sexta-feira, 15 de agosto de 2008

“O Perfume”

A literatura é o domínio da subjetividade, na mesma medida em que o cinema se realiza através do imediatismo descritivo. Odor e tato, sentidos tão valiosos para a construção da memória afetiva, sempre receberam alguma atenção (embora geralmente secundária) por parte dos escritores. Já os cineastas, restritos ao distanciamento audiovisual, sequer poderiam imaginar apreender tamanha vastidão de possibilidades emocionais. Limitam-se a mostrar a superfície da matéria, tentando criar alusões que não podem evitar o genérico e o imponderável.
Tom Tykwer deparou-se com esse gigantesco obstáculo ao filmar o romance de Patrick Süskind, cujo enredo é totalmente fundamentado naqueles dois sentidos, irreproduzíveis sem o auxílio da palavra. A narração em off, de John Hurt (repetindo o que ele fez em “Dogville” e “Manderlay”, de Lars von Trier), veio a calhar para suportar a demanda. Mas o sucesso do projeto advém da espantosa fotografia de Frank Griebe, que consegue captar as texturas e superfícies quase como se pudéssemos tocá-las – não sentimos seus odores, evidentemente, mas o domínio da materialidade aproxima-nos da percepção olfativa; e não seria possível exigir mais.
A reconstituição histórica é primorosa, escancarando a putrefação, a desumanidade e o atraso cultural dos grandes centros urbanos europeus (Paris, no caso) durante o Antigo Regime. A botica do mestre italiano, representado por Dustin Hoffman, remete à coleção farmacológica do Palácio Real de Madri. O final grandioso, subversivo no limite da heresia, lembra o clímax de “Zabriskie Point”, de Antonioni, talvez com subtextos invertidos.
A crítica brasileira tem uma implicância tola com o diretor alemão. Talvez seja por causa do sucesso “Corra, Lola corra”, ao qual muitos torceram os narizes, afetando até mesmo o bom “Paraíso” (2002), com roteiro do mestre Kieslowski. Não conheço o romance de Süskind, mas revejo “O Perfume” com a sensação de que, dentro das limitadas possibilidades, Tykwer e Griebe realizaram algo digno de registro.

Um comentário:

Carlos Alberto Mattos disse...

Concordo inteiramente com você. O filme foi subestimado pela crítica, e não só no Brasil. O trabalho de sugestão sinestésica dos odores através das texturas da imagem e de detalhes das interpretações dos atores é fenomenal.