segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A cidadania criminalizada



As figuras antipáticas e impopulares de Anthony Garotinho e Sérgio Cabral embotam os significados de suas prisões. Mas a identidade dos personagens (e até sua inocência) tem pouco a ver com o aspecto mais preocupante dos episódios: o exibicionismo punitivo esvaziado de conteúdos jurídicos ou morais.

A banalização do encarceramento, a humilhação pública dos réus, a pantomima da soldadesca, a verborragia agressiva dos procuradores, eis que o teatro “excepcional” da Lava Jato vai sendo naturalizado, virando uma rotina de atitudes extremas desnecessárias.

Esse costume só existe graças ao limitado leque partidário da operação. Sua isonomia negativa espelha o recorte originalmente desigual, que também explica a tolerância que a operação desfruta na cúpula do Judiciário. Se tratamentos indignos pudessem atingir lideranças do PSDB, o precedente seria cortado na primeira tentativa.

O padrão temerário da Lava Jato evidencia uma peculiar desconfiança nos ritos processuais. As cortes inferiores e as autoridades policiais parecem querer castigar os indiciados antes que se defendam, exorbitando o prejuízo para que ele fique irremediável mesmo no caso de absolvição. Preferem tolher direitos ao risco de impunidade.

Há quem considere tais direitos “privilégios”, alegando que fogem às práticas vigentes. Assim opera o que chamei de “malufismo jurídico” (abusa mas prende), um raciocínio de fachada solidária que parte das violações cotidianas sofridas por negros e pobres para chegar à tolerância com as violações praticadas contra ricos e brancos. Em vez de se rechaçar quaisquer formas de injustiça, defende-se generalizá-la.

A metáfora bélica do “combate” à corrupção explica o tom raivoso dos seus apologistas. Mas não é outro o espírito do crime organizado, nem o da polícia assassina. Em comum, a ideia de que o exercício pleno da cidadania configura um obstáculo, uma veleidade burguesa ou, pior, um subterfúgio de malfeitores.

E a narrativa guerreira é sedutora. A glamourização midiática alimenta a ostentação repressiva gratuita, que alimenta o gozo obsceno com o sofrimento de Garotinho, Cabral e outros réus. O apelo sensacionalista supre a falta de motivos para os requintes autoritários e desmoraliza, ou inibe, eventuais medidas recursivas que venham repará-los.

O comando da Lava Jato sempre buscou exatamente isso: saciar a psicose vingativa do público, instrumentalizando o espetáculo do justiciamento precoce em troca de uma popularidade que imponha as “convicções” dos acusadores. Quando fizerem o mesmo com Lula, por exemplo, todos ficarão satisfeitos e conformados.

Tipicamente fascista, o punitivismo demagógico não é apenas um sintoma da falência dos valores da democracia representativa. É, acima de tudo, elemento agravador do problema. O apoio da sociedade nunca legitimou fenômenos dessa natureza; pelo contrário, abriu caminho para tragédias históricas. Já devíamos ter aprendido a evitá-las.

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