quarta-feira, 21 de junho de 2017

Cálice



É enganoso tomar os esculachos públicos de gente famosa como episódios de alguma guerra entre facções ideológicas. A pantomima incivilizada parece resumir os eventos sob uma dramatização meio histérica de militância, mas a imagem do tal “Fla-Flu” esconde e mesmo edulcora o cerne do problema.

Fosse apenas questão de confronto radicalizado, os bacanas imbecis que insultaram Chico Buarque diante das vitrines do Leblon teriam coragem de fazê-lo contra Aldir Blanc, outro gênio da raça, nalgum botequim da Tijuca. O gesto de fanatismo guerreiro até compensaria o belo cacete que tomariam da assistência.

Mas não há choque de fato. Nos raros casos em que as vítimas engrossam os bate-bocas, seus provocadores recuam para balbucios insultuosos ou se refugiam nos apupos grupais. Claro que os ataques transcorrem, comodamente, em cenários pouco afeitos a quebradeiras. Pois essa contingência demonstra que as iniciativas já nascem limitadas por certa preocupação com a, digamos, integridade corporal.

Não há embate pois é exatamente isso, o conflito, que os energúmenos tentam impedir: a presença do antípoda no mesmo ambiente seleto e visível. E assim o constrangimento de pessoas notórias, feito espetáculo de autopromoção, ganha força de exemplo. Serve para atemorizar o antagonista, afastando-o das arenas sociais, silenciando os debates provocativos com os quais ele atrapalha a fabricação de sofismas, sejam midiáticos ou partidários. Reproduzindo as bolhas assépticas da internet.

As reações díspares da mídia e do público reforçam a coloração sectária do fenômeno. É necessário classificar os envolvidos para que os episódios despertem ora o conformismo por supostos merecimentos das vítimas (“petista hostilizado”), ora a indignação diante da violência do ato (“jornalista agredido”).

Daí que não basta defender a tolerância, se ela significar uma passividade masoquista diante da estupidez. Porque os imbecis têm defensores, igualmente covardes, até nos porta-vozes do discurso apaziguador, com seu bom-mocismo cínico e vingativo que alega direitos quando a coisa aperta. O golpismo está cheio de democratas.

É necessário ir mais fundo, expurgar as falsas dicotomias que alimentam e disfarçam o círculo vicioso do impulso autoritário. Em vez de uma batalha de interesses díspares, denunciar a normalização da mesma estratégia. Uma gradativa unanimidade pela recusa violenta do dissenso, que de muitas formas reverbera a demonização do regime político. Inclusive através da caricatura futebolística da ideologia.

Mas parece impossível combater essa tendência no império da ambiguidade permissiva que embala repúdios e tolerâncias circunstanciais, na imprensa e nos círculos militantes.

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