terça-feira, 30 de setembro de 2008

Nathaniel Jebão

Personagem de Fausto Wolff na revista Bundas. Ano 1, número 52, junho de 2000.

Rainha do frevo e do maracatu

“Mais uma vez Vossa Fernanda Cardosia Real brilhou no exterior, para alegra dos seus milhões de fãs brasileiros. Com os cabelos devidamente enxampoados, as argentinas melenas devidamente alisadas na véspera pelo valete de chambre Sierra de los Huevos e nenhuma gota de suor na testa, encantou os teutos dançando maracatu em Hannover. E ainda dizem que o rei é snob. Embora, como ele mesmo confessou, tenha um pé na cozinha, ninguém pode dizer que carece de nobreza. Nobreza de alma, principalmente. Que outro pai patrocinaria uma feira em Hannover para o filho, príncipe herdeiro? Que outro pai seria tão generoso com o genro, colocando-o em todos os conselhos de estatais e para-estatais? Que outro artista daria uma xepa de maracatu bem requebrado sem cobrar cachê? Os brasileiros, principalmente os poucos pobres, devem rezar todas as noites por este rei que é um verdadeiro pai.”

domingo, 28 de setembro de 2008

O esquecimento conciliador

Publicado na revista Caros Amigos de setembro de 2008, integrante da matéria de capa "Barbárie não se anistia"

Regimes ditatoriais só terminam quando as instituições competentes promovem o julgamento público de suas lideranças, sob amplo debate da sociedade. A ruptura histórica fundadora do processo de redemocratização depende de uma inflexível condenação do período antecedente, de acordo com os preceitos do estado de Direito recém-estabelecido. Qualquer concessão apaziguadora leva a questionamentos sobre a própria natureza do novo sistema de governo, pois não é possível ser verdadeiramente democrático e tolerar qualquer violência autoritária.
O motor que impulsiona os necessários acertos de contas é a memória, cuja preservação garante a publicidade e a punição dos atos criminosos, o constrangimento dos responsáveis e a educação das gerações vindouras. A Lei de Anistia visou justamente o inverso, condicionando o restabelecimento da normalidade a uma amnésia ampla, geral e irrestrita. Era fácil propor a impunidade generalizada, pois os adversários do regime já haviam sofrido punições desmedidas e ilegais (eis porque a Lei só contempla aqueles que a arquitetaram).
Há justificativas legais, morais e históricas imbatíveis para a revisão da Anistia. Mas o resgate da memória das vítimas da ditadura teria uma importância adicional nos dias correntes, quando os espectros da desmoralização, da crise funcional e da indisciplina rondam as Forças Armadas. Ajudaria a lembrá-las que vivemos uma democracia, regime no qual os militares obedecem muito, decidem pouco e nada falam, submetidos que estão a um governo civil cuja legitimidade popular lhe confere poderes que nem os mais virulentos déspotas conheceram.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O banditismo das estradas tucanas

De Campinas a Franca, depois Ribeirão Preto, Jaú e novamente Campinas, são 757 km. Gasta-se nessa travessia a estapafúrdia quantia de R$ 92,90 em pedágios, para um único veículo de passeio. São 15 praças. O equivalente a um pedágio por trecho de 50 quilômetros. Um real de oito em oito quilômetros.
Quem jamais verificou se a conta bate? Por que um simples carrinho precisa casar um real para cruzar o asfalto pintado por cinco míseros minutos? Por que não vinte centavos? Ou vírgula quarenta e dois? Por que na modesta SP 225, em Dois Córregos, paga-se, numa única tunga, R$ 11,00? E por que são R$ 11,20 para sair de Rio Claro, pela rodovia Washigton Luís?
Direito de ir e vir uma ova.
E se fosse no governo Mercadante? Com a empreiteira do Lulinha?
Enquanto esse verdadeiro estelionato continuar sendo cometido pelas concessionárias, em concluio com os governos da nefasta coligação PSDB-DEM (PFL), sob as barbas do Ministério Público, da OAB, dos Tribunais de Contas e da Assembléia Legislativa, em pleno Estado de São Paulo, o conceito de Justiça permanecerá uma ilusão para enganar bocós.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

“A linguagem secreta do cinema”

O francês Jean-Claude Carrière é dos mais importantes roteiristas em atividade. Trabalhou com ícones como Jacques Tati, Luís Buñuel, Milos Forman, Peter Brook. É também escritor de prosa ficcional, além de dramaturgo, o que garante fluidez e elegância a esse pequeno livro de reflexões.
Dividido em digressões temáticas, à guisa de palestras ou aulas, aborda o cinema através de assuntos amplos (linguagem, realidade, tempo), sem prender-se à precisão técnica. Neste aspecto, seria complemento ideal para guias objetivos como “A linguagem cinematográfica”, de Marcel Martin, de leitura igualmente obrigatória.
Suas análises estão carregadas de uma visão apaixonada do trabalhador cinematográfico enquanto artesão e do cinema como arte-síntese. Apesar de certo purismo conservador, algo inadaptado à tecnologia e ao entretenimento de massas, trata-se de uma viagem surpreendente e muito elucidativa pelas reminiscências do mestre.
A reedição comemorativa da Nova Fronteira é simplíssima. Ilustrações e tratamento adequado (prefácio informativo, apêndice com filmografia citada, nota biográfica do autor) tornariam a obra antológica.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O Estado salvador não é bobo

O governo estadunidense continua utilizando dinheiro público para recuperar as instituições particulares que protagonizaram a crise financeira em curso. Já questionei, na época das primeiras intervenções, as aparentes contradições da cartilha neoliberal – no fundo, muito coerentes com seus princípios básicos.
O Estado salvacionista só é execrado pelo capitalismo predatório quando tenta aplicar políticas compensatórias para miseráveis e pobres. Salvar banqueiros e especuladores falidos deixa de ser assistencialismo e torna-se responsabilidade governamental. Afinal, crianças famintas não acarretam qualquer “risco sistêmico”.
Parece divertido assistir à administração Bush cometer seus pecados estatizantes em pleno século 21. Se há algo que diferencia republicanos e democratas, é a importância mínima conferida pelos primeiros ao papel do Estado, principalmente em questões sociais e econômicas. E Bush venceu com uma plataforma explícita de não-intervencionismo (assim como a alemã Merkel e o francês Sarkozy, que agora também relativizam suas posições).
A sombra de 1929 tem sido superdimensionada. Em qualquer cenário pré-11/9, o Congresso dos EUA deixaria os burocratas falando sozinhos, com ratoeiras nos bolsos. Um punhado de magnatas antropófagos compraria as empresas falidas para revendê-las em pedaços, como ocorreu tantas vezes. E os winners continuariam zombando dos losers que não sabem lidar com a bufunfa.
Acontece que hoje os EUA estão divididos numa campanha presidencial de forte carga simbólica e resultados imprevisíveis. O pacote intervencionista de Bush é pura manobra eleitoreira, paliativo para evitar a catástrofe republicana, a dois meses da votação. Pode parecer um gesto desesperado, e em parte é. Mas, como sempre, suas verdadeiras motivações escondem-se muito além (e através) do catastrofismo econômico.

Alckmin prepara a vitória de Marta

A situação paulistana é comum em campanhas eleitorais: um candidato lidera com folga, enquanto outros dois disputam acirradamente a segunda vaga na votação decisiva. O desespero e a incompatibilidade política levam à troca de agressões, criando animosidades entre militâncias e eleitores dos dois pleiteantes. No segundo turno, os apoiadores do preterido tendem a esboçar uma vingança silenciosa contra o agressor.
Dificilmente o primeiro colocado perde uma eleição nessas circunstâncias.
Mas a guinada agressiva da campanha de Geraldo Alckmin antecipa uma estratégia de “terra arrasada” que vai além dos embates eleitorais. Alckmin agarrará José Serra num abraço de náufrago, alimentando uma luta fratricida na coligação PSDB-DEM (PFL) que governa Estado e Prefeitura. É a manobra do “perco eu, perdemos todos”.
Serra será provocado a defender o ex-malufista Gilberto Kassab e a criticar uma administração estadual cuja continuidade, em tese, representa. Os políticos tucanos que, contrariando as diretrizes partidárias, fazem campanha para o prefeito demo, serão constrangidos a assumir sua infidelidade ou a silenciar vexatoriamente. E em breve os demos vão contra-atacar, perpetuando o ciclo agressivo.
O gesto de Alckmin parece partir do pressuposto de que, se ele não vencer a disputa municipal, o sucesso de Marta Suplicy é preferível à perpetuação do serrismo – e talvez não seja uma análise totalmente equivocada. Se a campanha da petista souber manobrar nesse ambiente conturbado, triunfará com menos dificuldade do que se pensa.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Pré-rafaelitas

Artistas britânicos que tentaram resgatar um ideal de pureza e espontaneidade supostamente destruídas pelo sucesso do renascentista Rafael (1483-1520). Reuniram-se numa irmandade fechada, entre 1848 e 1853, tendo como principais aglutinadores John Everett Millais (1829-1896), Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), William Morris (1834-96) e William Holman Hunt (1827-1910). Negaram o academicismo vitoriano, confrontando-o com nova temática (mitologia, simbolismo, sensualidade) e profunda reverência ao medievalismo italiano. Apesar da representação naturalista, criaram uma arte hermética, transcendente e não raro inescrutável. Tiveram grande influência sobre os surrealistas das décadas posteriores.

A curta história do grupo renderia uma ótima versão cinematográfica, à qual não faltariam detalhes folhetinescos. Millais teve um caso com a esposa do célebre crítico John Ruskin, Effie, desposando-a em seguida. Hunt casou-se com a irmã de sua falecida esposa. Morris (socialista pioneiro, trabalhou com Engels) amargou um casamento ruinoso com a belíssima Jane Burden, que teria sido amante de Rossetti. Este, poeta inspirado, terminou seus dias em profunda depressão, causada pela dependência do sedativo Cloral.

Tudo isso num período de grandes perturbações político-sociais e em plena efervescência do realismo da Escola de Barbizon, que antecederia o desabrochar do Impressionismo e, em seguida, as vanguardas do século XX.
Partindo de cima: "Anunciação" (1850), de Rossetti, "Ophelia" (1852), de Millais, (1860), "O encontro do Salvador no templo", de Hunt.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A moral camaleônica

Publicado na página do Le Monde Diplomatique

Os governos Lula suscitaram extensas discussões sobre a compatibilidade entre discurso ético e pragmatismo político-eleitoral. Talvez para dissociar-se dos defensores do presidente e estigmatizar seu constrangimento relativista sobre o assunto, a imprensa oposicionista lançou-se numa cruzada de ultralegalismo cívico, que logo receberia colorações partidárias.
Um dos aspectos negativos dessa vertente “cidadã” de tolerância zero é, paradoxalmente, sua permissividade conceitual. A abrangência normativa permite a assimilação de uma grande variedade de preceitos, entre os quais aqueles que aspiram a certa superioridade moral, mas não passam de enunciados discutíveis, contraditórios ou apenas tolos, que a ortodoxia acrítica transforma em dogmas sobrenaturais.
O fetichismo da conduta ideal do administrador revela então seu caráter artificial e ideológico, permitindo a deterioração da moralidade (sistema pessoal de valores) em moralismo oportunista, alimentado para enquadrar adversários e isentar aliados em tempos pré-eleitorais. A manipulação da subjetividade “transcendental” dos princípios morais confere imanência atemporal e incontestável a repertórios de condutas engendrados circunstancialmente, sujeitos às conveniências de seus formuladores.
Analisemos, como exemplo, as reações ao suposto terceiro mandato de Lula (leia o texto integral).

Rick Wright (1943-2008)

Morreu com ele o Pink Floyd, agora de vez. Triste coincidência que isso aconteça com um dos protagonistas das brigas que levaram ao rompimento da banda em 1985 (o outro, claro, foi o chefinho Roger Waters).
Sempre alimentei certa ilusão de assisti-los numa reedição da turnê “Delicate sound of thunder” (1989), obra-prima audiovisual que deglutíamos incansavelmente. Todo Pink Floyd soa demasiado próximo, e é complicado assimilar o desaparecimento de um ídolo de tamanha importância, mesmo o discreto e subvalorizado tecladista Wright.
Fui forjado a Floyd: meus dois primeiros discos foram “Infidels” (Dylan) e “The final cut” (curiosamente o último da banda). Poucos anos depois, passaríamos tardes, noites e madrugadas gastando “The wall”, “Wish you were here” e “Dark side of the moon” como se fossem os únicos álbuns do mundo. Sabíamos cada letra, acorde, solo, nota por nota.
É impressionante como, apesar das muitas outras referências adquiridas (e talvez até mais valorizadas) desde então, ouvir Pink Floyd mantém esse frescor de reminiscência agradável. No universo de certo pop/rock instrumental costumeiramente tratado por “progressivo”, salvo poucas exceções, Gilmour, Waters, Mason e Wright permanecem inigualáveis.

“The great gig in the sky” é um improviso vocal com acompanhamento de piano, composto por Wright para o clássico “Dark side” (1973).


terça-feira, 16 de setembro de 2008

O mito da privacidade

Há cerca de onze anos, um amigo ouviu-me conversando ao celular a quilômetros de distância. Ele usou uma traquitana feita com papel alumínio e a antena de um antigo rádio amador. Não chegou a gastar um centavo para realizar a brincadeira.
A gritaria em torno do suposto grampo envolvendo o presidente do STF e um senador deve ser compreendida no contexto do desgaste vivido pelas instituições que abrigam ambos os personagens, que têm lá seus motivos para alimentar factóides.
As autoridades são espionadas desde tempos imemoriais. É verdade que o desmanche do antigo SNI da ditadura levou muitos arapongas à espionagem privada, mas nem o aparato estatal deixou de existir, nem as empresas do ramo nasceram ali. Investigações mais ou menos clandestinas são rotineiras no mundo das grandes corporações, vitimando não apenas os concorrentes, mas também os próprios funcionários das contratantes.
O equipamento necessário para escutar conversas alheias, como demonstra a experiência, é ínfimo e acessível. Essa novela das maletas caríssimas, dos microfones ultra-sensíveis e de outras tecnologias de ficção científica não passa de fumaça para esconder a constrangedora obviedade.
Quem são aqueles homens sem uniforme ou qualquer identificação, que vemos amiúde nas calçadas ou entradas de prédios, sentados junto a centrais telefônicas, com fones de ouvido? Alguém já ousou interpelá-los, pedir referências, indagar seus motivos?
O que de fato acontece quando baixamos uma atualização do navegador ou de qualquer programa permanente de nossos humildes computadores? Que informações trocamos com o éter quando percebemos que, sem qualquer comando, nossas conexões de banda larga permanecem ativas?
Tais perguntas são tratadas como delírios conspiratórios porque a fantasia da segurança coletiva torna tudo mais suportável e cômodo. Não queremos admitir que vivemos vulneráveis às ações de todo tipo de banditismo invisível, contra o qual pouco ou nada podemos fazer. Por isso inventamos esses espiões de gibi, que, julgamos, não gastariam fortunas para investigar pobres mortais sem grana. Será mesmo?
Com todo o respeito, se autoridades poderosas e influentes julgam que podem falar em seus celulares à vontade, ou elas são muito ingênuas ou fingem sê-lo. Eu, que sou bobo, tomo minhas precauções há pelo menos onze anos.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Memória: o Guarani há trinta anos

A data precisa ser lembrada, para confrontar o esquecimento da grande imprensa. No dia 13 de agosto de 1978, o Guarani venceu o Palmeiras por um a zero, sagrando-se campeão brasileiro de futebol. O primeiro jogo teve placar igual.
O gol do título foi marcado por Careca. Na final, o craque Zenon estava suspenso, porque no jogo anterior o árbitro Arnaldo César Coelho (esse da Globo) brindou-o com o terceiro cartão amarelo.
Pouco importa a opção futebolística do torcedor. Basta imaginar as previsões equivocadas, os comentários preconceituosos e as idiotices bairristas expelidos na época pelas crônicas das capitais. Naqueles momentos de catarse, os bugrinos tinham muito mais a comemorar do que "apenas" o título.

GUARANI 1 x 0 PALMEIRAS
Data: 13/Agosto/1978
Local: Brinco de Ouro da Princesa (Campinas)
Gol: Careca aos 36 do 1° tempo
Árbitro: José Roberto Wright (RJ)
Renda: Cr$ 1.706.280,00 com público de 27.086
GUARANI: Neneca; Mauro, Gomes, Édson e Miranda; Zé Carlos, Manguinha e Renato; Capitão, Careca e Bozó. Tec.: Carlos Alberto Silva
PALMEIRAS: Gilmar; Rosemiro, Beto Fuscão (Jair Gonçalves), Alfredo e Pedrinho; Ivo, Toninho Vanusa e Jorge Mendonça; Silvio, Escurinho e Nei. Tec.: Jorge Vieira

Note-se o subtexto político da narração de Osmar Santos, nos últimos minutos de jogo (Fausto Silva é o repórter de campo).

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Golpe na Bolívia

Raríssimas análises publicadas na grande imprensa brasileira chamam o golpe de Estado em andamento na Bolívia por seu nome verdadeiro. Uns enxergam “turbulências”, outros “confrontos”, aqueles ainda vêem “protestos”. Parece haver uma “crise” generalizada, cuja responsabilidade é não apenas difusa, mas compartilhada pelo presidente Evo Morales.
Morales é mandatário legítimo, confirmado em referendo pela maioria absoluta da população. Pode ser ruim, pode mesmo ser um crápula, mas foi eleito e governa dentro das normas vigentes. Seus opositores promovem destruição, violência, saques e sabotagens para derrubá-lo. A isso o senso comum denomina “golpe”, sem meias-palavras.
Por simples prazer especulativo, imagine-se que o presidente em questão é FHC e os revoltosos utilizam bonés e bandeiras do MST (com o perdão da rima). Qual seria a reação da Folha de São Paulo, ou do Estadão, ou do Globo?
Mas, não coincidentemente, esses veículos apoiaram o golpe militar de 1964. Os mesmos “defeitos” do governo Jango usados para culpá-lo por ter “provocado” uma reação dos militares são agora ponderados para fazer Morales parecer “merecedor” de castigo semelhante.
É como se dissessem que, em determinados momentos, um golpezinho pode até ser aceitável. Na Bolívia há muitos democratas assim.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Morreu Fausto Wolff

Faustin von Wolffenbüttel (1940-2008) foi correspondente de guerra, escritor, dramaturgo, professor de literatura nas universidades de Copenhague e Nápoles. Editou o Pasquim e colaborou com a saudosa revista Bundas, onde criou o hilariante personagem Nathaniel Jebão, colunista social ultra-reacionário e racista. Pretendo resgatar trechos dessas colunas ocasionalmente.
O velho Lobo possuía uma página eletrônica, onde é possível conhecer alguns de seus textos. Foi-se um grande boêmio, comunista teimoso, gênio da crônica. Abaixo, em texto de 2006, ele comenta um derrame que sofreu.

“Outro dia quase bati as botas. Fechado o expediente, fiquei bebendo uísque enquanto olhava o mar. À medida que bebia, mais o mar se agitava, me agitando também. Tive uma idéia genial e voltei ao computador, mas - vejam só - não conseguia escrever as frases direito. Era sempre aprotaledo pelas pavrolas. Retornei à janela, fiquei vendo o mar e tendo idéias geniais. Bebi mais algumas doses de uísque e, quando minha mulher voltou do trabalho (é, meus filhos, alguém tem de prover), contei-lhe o que ocorrera. Ela: ''Você teve um princípio de enfarte ou um princípio de isquemia'', e, sob meus discretos protestos, arrastou-me ao hospital.
Colocaram-me num leito ao lado de muitos outros, separados por um lençol. Braços furados por mil agulhas, fui vítima de um clister e do resultado do clister, tudo isso em meio a dezenas de pessoas que fingiam ignorar minha indiscreta performance. Lá pelas nove da manhã fugi do hospital e fui caminhando por Ipanema. Acabei num boteco em frente ao estúdio do Millôr, na Gomes Carneiro. Tomei um conhaque, comi um sanduíche de pernil e fumei um cigarro. Bateu-me a vontade de escrever um poeminha. Pedi lápis e caneta, mas as mãos não obedeciam ao cérebro.
Só depois de desenhar mentalmente a letra é que conseguia reproduzi-la no papel e ainda assim muito mal. Desisti do poema e fui pedir a opinião do Millôr, que há 50 anos é uma espécie de irmão mais velho. Aconselhou-me a voltar ao hospital, o que fiz de táxi desta vez. As enfermeiras me receberam de braços abertos e nem me torturaram. Tivera mesmo uma isquemia. Três dias depois, feitos todos os exames, me mandaram embora e proibiram-me de fazer as três coisas de que mais gosto: ver Mannhattan connection, discutir com adolescentes e ler originais não solicitados.
Caíram nessa? Não acredito. É isso mesmo que vocês pensaram. Estou proibido de fumar, beber e procriar, pois, no meio de uma dessas atividades, o sangue pode derrapar na veia e sair da pista da minha vida, que pode não ser grande coisa mas é minha. Por isso nunca mais fumei, bebi e procriei ao mesmo tempo. Tudo tem seu tempo certo.”

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

"Os cavalos de Dom Ruffato"

O autor, Rubervam du Nascimento, envia-me o livro de Teresina (PI), com simpática dedicatória. Série de poemas com temática homogênea, remete ao "Eles eram muitos cavalos", do homenageado Luiz Ruffato.

"quando escrevo cavalo vejo
uso total de força bruta
ganho de tudo na marra
gestos de gente rude

espelhos no teto velho
espalham sujo das telhas
luz do céu de brigadeiro
nunca passou de escuro

corcéis pelo mundo inteiro
em disputada carreira
força treinada aos berros
em estradas de sol negro"

O livro, de 2005, venceu o Prêmio Eugênio Coimbra Jr, da Prefeitura do Recife, no ano anterior. Não encontrei imagens da capa.

"quando digo cavalos lembro
brilho de cascos lisos
rodas de aço riscos
nas cores de domingo

corpos em movimento
braços de arco-íris
brinquedos vivos
nas tardes de cimento

cavalos aos pulos
pela trilha côncava
suando em trânsito
pelagem do susto

voltarei ao tema
quando as sombras
de outros brinquedos
brilharem no asfalto"

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Memória: "Cheiro de podre"

Franklin Martins, jornal O Globo, 20 de novembro de 1995

“O presidente Fernando Henrique Cardoso agiu bem ao afastar de seus cargos o chefe da Coordenadoria de Apoio e de Cerimonial do Palácio do Planalto, embaixador Júlio César Gomes dos Santos, e o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Mauro José Gandra. A escuta telefônica na casa do diplomata revelou que tanto ele quanto o ministro mantinham excessiva intimidade com o representante no Brasil da Raytheon, empresa americana que venceu a bilionária licitação para o Sivam.
(...) Segundo a PF, tendo recebido denúncia anônima de que o diplomata estaria envolvido com o tráfico de drogas, ela obteve autorização do juiz Irineu de Oliveira Filho, da 2ª Vara de Entorpecentes de Brasília, para grampear os telefones do diplomata. Durante os 22 dias de escuta, nada foi constatado que confirmasse a denúncia. O acaso, porém, teria permitido que se flagrasse Júlio César em pelo tráfico de influências, num caso típico de ‘atirou no que viu, acertou no que não viu’. Acredite se quiser.
(...) Será que a PF acha razoável grampear telefones a três por quatro, bastando para isso uma denúncia anônima, mesmo que frágil? (...) Tudo indica que (...) a PF, por iniciativa própria ou estimulada por alguém, tenha forjado a história da denúncia anônima para arrancar da Justiça uma autorização que lhe permitisse desmascarar o diplomata por tráfico de influência. (...) O que o Governo Fernando Henrique acha do fato de a PF usar artifícios para burlar a lei, atentando contra o sigilo das comunicações telefônicas, garantido pela Constituição? (...)”

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Liberdade de fumar

Tercio Sampaio Ferraz Júnior, advogado, professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. É autor, entre outras obras, de "Direito Constitucional". Publicado em 3 de setembro de 2008, na Folha de São Paulo

"(...) Já no preâmbulo da Constituição, o constituinte fez inserir a liberdade como um dos valores supremos do Estado democrático de Direito, como um dos pilares 'de uma sociedade fraterna'. Em seguida, a liberdade é garantida no rol dos direitos fundamentais (Constituição Federal, artigo 5º, 'caput').
(...) A liberdade constitucionalmente assegurada implica a existência de uma permissão forte, que não resulta da mera ausência de proibição, mas que confere, ostensivamente, para cada indivíduo, a possibilidade de escolher seu próprio curso de ação, ainda que venha a sofrer conseqüências prejudiciais de seus atos.
Isso é particularmente relevante para a questão referente ao alcance das restrições impostas ao tabagismo.
A Constituição entende o tabaco como um produto cuja propaganda está sujeita a restrições por lei (artigo 220, parágrafo 4º). Se o produto é lícito, o consumo pode ser disciplinado em lei que lhe estabelecerá as condições de exercício, mas jamais a supressão do seu exercício a pretexto de discipliná-lo.
(...) Depreendem-se, assim, da proteção constitucional à liberdade e à saúde duas normas claras e gerais quanto ao destinatário, com relação à ação de fumar: uma permissão forte de fumar e uma permissão forte de não fumar.
(...) É preciso ficar claro que ser fumante ou não-fumante não diz respeito a uma condição da pessoa, mas à opção exercida por alguém acerca da sua exposição ou não aos riscos do tabaco. Por de trás da distinção entre saudável e não-saudável está a própria liberdade. Por exemplo, ninguém pode ser obrigado a receber uma transfusão de sangue se sua opção religiosa o proíbe.
Portanto, uma proibição absoluta de fumar para todo e qualquer recinto coletivo fere não só o espaço reservado à autonomia privada, como fere também o dever de conciliar os direitos do fumante e do não-fumante, quando em ambientes coletivos: o dever do Estado de harmonizar, tecnicamente, os respectivos exercícios. Liberdade, nesses termos, opõe-se à tutela estatal.
Como respondeu, certa vez, Hannah Arendt a amigos que a advertiam para que parasse de fumar em virtude de problemas com sua saúde: 'Recuso-me a viver para minha saúde!'. "

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

“A love supreme”

Leio-o como extensão inevitável ao “Kind of blue”, do mesmo Ashley Kahn. Mantêm-se a diagramação arrojada, as muitas ilustrações, os quadros informativos. É mais denso que o anterior, no entanto.
O ano de 1964 chegava ao fim. Os brasileiros ainda tentavam digerir o golpe militar de março/abril. Estreava o show “Opinião”, com Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. Nas rádios, o auge comercial dos Beatles, “É proibido fumar”, de Roberto e Erasmo e “Berimbau”, de Baden e Vinícius. Os EUA entravam oficialmente na guerra do Vietnã, em meio ao acirramento e à generalização dos conflitos étnicos. Malcolm X e Martin Luther King pregavam para multidões.
John Coltrane (1926-67), já uma estrela da ABC-Paramount, desfrutava de ampla liberdade criativa. Seu grupo era formado por Elvin Jones (bateria), McCoy Tyner (piano) e Jimmy Garrison (baixo). Todos se reuniram no estúdio comandado por Rudy van Gelder para, numa curta seção noturna, gravar “A love supreme”.
A obra pode ser classificada como uma suíte em quatro partes, cuja unidade é comprovada pelos títulos religiosos (“Acknowledgement”, “Resolution”, “Pursuance”, “Psalm”). É uma profissão de fé, amargurada, fervorosa, catártica, digna de inserção definitiva no cânone da música ocidental.
No encarte do disco há uma longa oração escrita pelo saxofonista, para ser lida ouvindo “Psalm” (salmo). O solo de sax acompanha perfeitamente, sílaba a sílaba, essas palavras de louvor, repetindo o refrão “Thank you God” com a mesma sucessão de três notas graves. Experiência inesquecível, capaz de abalar os mais céticos.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Breve balanço olímpico

Antes que o assunto vire paçoca, aí vão alguns comentários tardios sobre Pequim/08.

- O rendimento da delegação brasileira foi decepcionante em vista dos investimentos públicos realizados. Poderíamos citar avanços importantes e pouco visíveis, mas a conta não bate. É necessário promover um amplo debate sobre o custeio do esporte de alto rendimento. Deve-se deixá-lo à iniciativa privada, mesmo que não haja qualquer apoio a determinadas modalidades? O discurso educacional é balela: não se aprende taekwondo, saltos ornamentais ou canoagem na escola.

- A inesquecível final do basquete masculino demonstra que a hegemonia dos EUA está com os dias contados. O motivo simples é que o padrão da NBA já chegou ao domínio de outras potências do esporte. A afirmação ainda parece estapafúrdia graças à subserviência da crônica brasileira e à proverbial petulância estadunidense. Mas tanto melhor: quando acontecer, o tombo geral será mais saboroso.

- O futebol olímpico, feminino e masculino, vai acabar. A qualidade técnica é baixíssima, incompatível com os gastos e a infra-estrutura exigidos pelas competições. Os jogadores dão perdigotos para medalhas e preferem não se arriscar a lesões e constrangimentos públicos. A FIFA quer prestigiar apenas as Copas, e conta com a anuência óbvia dos clubes, que mantêm as confederações, que mantêm a própria FIFA.

- A preocupante quantidade de revezes causados por instabilidade emocional demonstra a urgente necessidade de se reformular por completo o acompanhamento psicológico das delegações brasileiras. A ausência de Ricardinho no vôlei nasceu num entrevero personalista que poderia ser contornado com diplomacia e rigor. O mesmo vale para o auto-suficiente Jadel Gregório e quase todo o time da ginástica. O choro de Jade Barbosa no desembarque em Pequim foi algo inaceitável para atletas de sua categoria.

- A Globo perdeu os direitos de transmissão do Pan-Americano de 2011 e das Olimpíadas de Londres. Como conseqüência, o maior grupo de comunicação do país tende a boicotar o esporte olímpico. Péssima notícia para as equipes que dependerão de patrocínio privado, que investe em troca de visibilidade.